terça-feira, 27 de abril de 2010

Filmes

Um fim de semana farto em filmes, portanto, um parágrafo para cada um e muito mais para quem me encontrar no ponto de ônibus e quiser bater um papo sobre qualquer coisa:







Um Homem Sério, de Ethan e Joel Coen – A visão mais sombria atribuída à sociedade norte-americana atualmente transparece através do refinamento narrativo dos irmãos Coen, num filme de caráter autobiográfico, bastante pessoal, em que a cultura judaica direciona a ação das pessoas numa luta ferrenha contra os acasos da vida. Tudo é calculadamente planejado e favorece o naturalismo cênico que os irmãos conseguem aprimorar cada vez mais – até a posição do pé do protagonista, em determinada cena, parece estar descrita no roteiro. Em vários momentos, o filme alça vôo e vai longe, principalmente no prólogo e na sequência final, um poderoso golpe de esquerda ao som de Jefferson Airplane. Dizem que o humor é negro, mas já há um bom tempo que os filmes da dupla me provocam um riso desconfortável, amargo, a ponto de sumir rapidamente e dar lugar ao vazio e à reflexão. A América está desencontrada, a conduta moral de seus habitantes é diariamente colocada à prova, contas se acumulam na porta com a mesma velocidade com quem antigas máscaras caem, e, se olharmos pela janela, veremos que um tufão se aproxima violentamente - a hard rain's a-gonna fall?




O Diabo, Provavelmente, de Robert Bresson – “Sou a recusa de todas as políticas”, diz, num rompante paradoxal, o personagem principal deste que é o filme mais político de Bresson (mais até que O Processo de Joana D'Arc). Se tudo o que fazemos na vida, qualquer direcionamento ou decisão que tomamos, é por si só um ato político, pode-se dizer que a radicalização de diversas obsessões que deram forma à carreira do cineasta francês ganham corpo neste filme questionador, que debate, toma partido e se manifesta deliberadamente sobre questões pontuais ao homem, para no final não eximir ninguém da culpa de viver. Quando um passageiro do ônibus pergunta quem é que causa tantos tormentos à humanidade, Bresson ainda debocha ao responder quase cinicamente com a expressão que dá título ao filme.



Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton – O que esperar de uma adaptação com potencial para sugestões lisérgicas e ousadas capitaneada pelos estúdios Disney? Simples: um filme para agradar toda a família. Para isso, chame um cineasta de personalidade, mas subtraia dele toda sua autoralidade, seu percentual de exposição a riscos, sua veia criativa e entregue o filme na mão de especialistas em efeitos especiais e a uma roteirista careta e pronto!, é só esperar o tilintar de moedas caindo na conta. Burton saiu de Sweeney Todd, o mais atípico e sangrento filme de sua carreira, para mergulhar no buraco fantasioso de Lewis Carroll, um território que explora e domina com naturalidade desde seu segundo filme. Neste Alice, percebe-se claramente o desejo do estúdio de alinhar um estilo já firmado a uma série de padrões que impedem a consolidação de uma promessa que parecia ser certeira: é um filme que não fascina, cuja inegável beleza visual se estranha com a composição fria dos personagens e impede a fluência da emoção que existe naquele universo, evidenciando o embate entre as cores quentes do país das maravilhas e o universo soturno de Tim Burton, que trava as ambições da narrativa e, ao final, ainda tenta empurrar goela abaixo uma mensagem edificante. Quem diria, hein? Eu, que gosto do diretor, fiquei assaz decepcionado; já as crianças vão adorar (isso quem fala é minha irmã, aqui ao lado, por experiência própria, do alto de seus 8 anos). Em tempo: a Zahar colocou no mercado uma edição novinha e bem bonita de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas e seu sucessor, Alice Através do Espelho, com ilustrações originais e capa dura, bem mais recomendável do que o filme.
 
 
Operação França, de William Friedkin – Um crime, mas só hoje fui apresentado ao policial que reforçou a porcentagem de filmaços que pintaram nos cinemas em 1971. Gosto particularmente da atmosfera que Friedkin consegue imprimir ao filme, de uma certa desorientação, de ruas frias, prontas para derrubar as certezas dos homens e enganá-los com suas artimanhas e peculiaridades. O silêncio, para isso, é importantíssimo – e Friedkin administra o espaço com a intimidade de quem muito viveu por ali -, pois desafia o barulho propagado por ideais próprios e inventados arbitrariamente com uma respiração ofegante que poucos de seus colegas conseguiram repetir (e do qual talvez Paul Greengrass seja o principal discípulo). É um jogo de gato e rato irretocável, com o timing mais acertado em termos de ritmo e decupagem que o cinema policial dos anos 70 alcançou. Sua continuação, transposta para a Europa e dirigida por John Frankenheimer, expande o horizonte de possibilidades de um filme de ação e propõe uma investigação psicológica do tira interpretado por Gene Hackman (que, após ter levado o Oscar de melhor ator pelo filme original, numa interpretação seca e viril, se permite uma dose histriônica de cinismo e humor coerentes com um personagem que atende pelo nome Popeye).





Viver e Morrer em L.A., de William Friedkin – Recheado de elementos que permitem configurá-lo como um produto típico de sua época, os anos 80, desde a trilha sonora até a caracterização de certos personagens, este é um filme, usando palavras do próprio Friedkin, “sobre um mundo falso”. E qual o sentido em viver num mundo em que o dinheiro, as pessoas, as relações e os sentimentos são contaminados e apontam para um individualismo desolador e cruel? Partindo de um roteiro engenhoso, que em momento algum soa esquemático ao situar os conflitos que movem suas personagens, Friedkin faz um mosaico pop, sanguinário e efervescente de um microcosmo da década perdida, que ainda conta com uma perseguição de carros ainda mais dinamitada do que a presente em seu mais famoso filme. Se na década passada seu Operação França alcançou níveis máximos de excelência, o mesmo pode-se dizer deste, que é visto por muitos como o seu melhor trabalho – pode até ser, o que não dá é para esquecer Possuídos, um dos maiores momentos cinematográficos da única década que ainda não acabou.





Alice, de Claude Chabrol - O cineasta de gelo mergulha no gênero fantástico para transformar a lúdica aventura de uma menina num pesadelo sufocante de uma mulher que abandona o casamento: o país das maravilhas vira um casarão antigo habitado por pessoas desconhecidas num mundo do qual pouco sabemos. A Alice francesa deixa o marido para trás e se refugia em um ambiente misterioso, intimidante, onde os símbolos da obra original tomam vida através de elementos que reforçam a paranoia e o terror imbutidos em passos desconhecidos. É uma bad trip pesada. E o truque de Chabrol para acentuar essa atmosfera é retirar, tanto do personagem como do espectador, qualquer tipo de referência que tencione a compreensão daquele universo. Nunca se sabe o que irá acontecer na sequência seguinte, e a forma de lidar com essa expectativa, sempre à distância, bem a seu modo, colabora para o desfecho sombrio e em pleno desacordo com o que nossos instintos humanitários fazem com que esperemos dele (ou seja, nem sempre a redenção é possível, baby).



E ainda: A Sombra da Forca, filme nervoso de Joseph Losey; O Padre e a Moça, a obra-prima de Joaquim Pedro de Andrade e O Castelo Cagliostro, animação do final dos anos setenta do mestre Hayao Miyazaki

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